segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Questão de Gosto 3: Discutir por Gosto

Eu adoro discussão. Não animosidade — não gosto de cabeças quentes, troca de farpas, nem nada disso. Gosto de argumentar, debater, esgotar assuntos, explorar pontos de vista, imaginar o inexistente, teorizar o complexo, vasculhar os segredos. Talvez pela minha educação: cresci com gente me dizendo que havia uma única resposta certa para cada pergunta. Quando você percebe que não há verdade absoluta e que cada assunto esconde inúmeras possibilidades, é difícil esquecer e voltar ao mundo seguro dos conceitos prontos. No mínimo, eu quero conhecer e entender qual foi a resposta certa que ensinaram às outras pessoas.

Não sei dizer se vale a pena discutir comigo. Através de tentativa e erro, vou anotando de cabeça quem tolera argumentações longas e quem se irrita fácil com elas. Ou seja: no pior dos casos, ao menos estou tentando oferecer um serviço personalizado. Por mim, poderia continuar as discussões indefinidamente, mas as outras pessoas têm essas manias fúteis — como tomar banho ou comer ou dormir —, o que atrapalha um pouco.

Não gosto de assuntos intocáveis. Passei muito tempo sem discutir religião por medo, sem discutir política por comodismo e sem discutir cultura por ignorância. (Na verdade, acho que todas as razões acabam se resumindo a medo, de um jeito ou de outro.) Para recuperar o tempo perdido, nada pode ser sagrado — principalmente religião. Mas estou ciente que as discussões que começam com uma ofensa não são muito produtivas.

Até hoje, só encontrei uma forma de me aquietar com um assunto: ouvir o interlocutor dizer "Eu gosto" (ou "Não gosto"). Se você deixar alguma brecha lógica, eu vou querer explorar. Não importa se alguém realmente acredita que comer chocolate é errado "Porque não é natural" ou "Porque deus não quer" ou "Porque é crime" ou "Porque o Bruce Willis não come". Tudo isso dá margem à interpretação ou manipulação. Tudo isso significa que alguém está decidindo por você, não é realmente o seu ponto de vista. A única resposta que me satisfaz ao ponto de encerrar o assunto é: "Eu não como chocolate porque não gosto". É a resposta que me permite continuar cultivando a idéia de que não existe verdade absoluta (que é a minha resposta certa). É o jeito mais inequívoco de admitir que qualquer outra desculpa não importa, pois é apenas uma desculpa.

Se você gosta de chocolate, mas não come porque a Bíblia diz que é pecado, você ainda está agindo de acordo com seu gosto. Não há como abraçar uma religião sem gostar que alguém tome decisões por você, sem gostar da sensação de segurança que as respostas únicas lhe dão. Se você não come chocolate porque gosta da sua religião, fico igualmente satisfeito com a resposta. Você ainda está admitindo que faz as coisas ou deixa de fazer porque gosta, e não porque é "lógico" ou "certo".

E preciso, afinal, ceder à alguma convenção: gosto não se discute.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Questão de Gosto 2: Preconceito?

The Dark Knight é realmente tudo que andaram dizendo. (É, só vi nesta semana.) Minha parte favorita é que o roteiro não presume que você seja um idiota, uma grata surpresa que está virando regras nas adaptações de quadrinhos. E é um alívio ver essa abordagem em um filme do Batman, que muita gente teima em entender como personagem infantil. Metade das sessões de cinema das redondezas com a versão dublada... pára! Que criança assiste duas horas e meia de um história tão sombria? Também não entendi a escolha do trailer que passou antes, de um filme brasileiro que não lembro o nome. (Algo envolvendo um amor impossível entre uma menina rica e um guri da favela. Originalidade garantida.) Mas o que realmente me deixou pensando no meio disso tudo foi uma frase que meu amigo soltou em reação ao trailer.

Esse amigo funciona assim: é difícil não gostar dele, você precisa se esforçar. Qualquer pessoa que o conheça por mais de duas semanas percebe que ele é sobrenaturalmente honesto em tudo que faz e diz. Sério, só vendo; duvido que vocês estejam imaginando direito. Eu automaticamente sorrio por dentro quando ele começa uma frase com "Olha, vou ser sincero com você..." porque não acredito que ele consiga não ser sincero. Até onde sei, ele tem milhares de amigos e sempre encontra um quando andamos mais de cinco minutos pelo bairro — ou seja: provavelmente vale a pena ser do jeito que ele é.

Enfim, ele disse o seguinte: "Olha, vou ser sincero com você... sou preconceituoso mesmo, não gosto de filme nacional." Já vinha pensando há um bom tempo sobre esse tipo de coisa, o que é preconceito e o que chamam de preconceito, e não gostar de uma coisa não pode ser preconceito. (Tudo bem que ele não tinha assistido ao filme e já estava decidido a não ver, já supondo que segue o formato padrão dos filmes nacionais. E provavelmente segue mesmo.) O ponto é que ele estava quase se desculpando por não gostar dos filmes nacionais que já havia assistido, e presumir que não gostará dos que virão. Mas acho que gostar e desgostar são as coisas mais honestas que as pessoas podem fazer, é o modo como você se expõe e mostra aos outros quem é.

Algo que estava pensando há muito mais tempo: o que realmente define quem você é? Muito já se gastou em papel e palavras para definir o que você não é.
Você não é o que você tem.
Bens materiais vem e vão, não melhoram nem pioram ninguém por si — até dizem bastante sobre o dono atual, mas nem sempre o que ele espera que digam.
Você não é o que você faz.
Uma profissão é um adestramento, é enfiar uma pessoa por um daqueles brinquedos com um buraco quadrado, um redondo e um triangular — trate de se contorcer para passar por um deles. Dado estatístico recém-inventado: 9 a cada 10 pessoas são menos do que poderiam ser porque estão muito preocupadas em fazer o que lhes dizem que deveriam fazer.
Você não é o que você pensa.
Ou o que você pensa que pensa. Você é um animal, tem instintos, reações condicionadas. Pare e preste atenção em quantas coisas você faz automaticamente. Ou você pensa e analisa TUDO que faz durante o dia? Duvido que o sistema educacional, as propagandas e o jornalismo te dêem essa chance. E provavelmente já saiu do berço com religião, partido político e time de futebol escolhidos pelos pais. Você pode mudar o que pensa, essa é a parte boa; mas desculpe, não há como começar do zero, repensar tudo imparcialmente, definir um código moral todinho seu. Aceite que alguns dos seus pensamentos não são seus, porque não são eles que te definem.

Não concorda? Prefiro assim, a viagem só precisa fazer sentido para mim. Naturalmente, não cheguei a nada conclusivo, mas acho que a resposta está naquela parte animal, instintiva, que o adestramento não consegue alcançar. É uma afirmação bastante estranha, porque o instinto é o que faz com que um cachorro se comporte como todos os demais cachorros (balançando o rabo, levantando a perna, andando em círculos). Impedindo que você pense. Reação automática, mas emocional: gosto ou não gosto. Claro que gosto pode ser condicionado pela cultura. Você provavelmente não gosta de comer cachorros, mas eles são apreciados em várias partes do mundo. Nada impede que um chinês ou coreano não goste de comer cachorros também. Isso (e todos os outros gostos e desgostos) os tornam indivíduos. Há gente comendo gente em todo lugar, e o canibalismo não é lá tão aceito culturalmente, muito menos incentivado.

[Que exemplo terrível. Melhor parar de falar de comida.]

O que estou tentando dizer é que aquilo que gostamos ou não é o que nos diferencia, nos determina, mesmo que não possamos escolher essas coisas diretamente. Aliás, justamente porque não podemos escolher. Se as pessoas pudessem controlar com tanta facilidade quem elas são, provavelmente não teríamos tantos problemas no mundo. E provavelmente não teríamos tantos indivíduos, pois seria muito mais cômodo escolher ser igual a todo mundo. Se não fosse o gostar ou não gostar, o que levaria alguém a se levantar contra as regras?

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Questão de Gosto 1: Imagine

Continuo odiando Beatles ou John Lennon ou qualquer coisa desse balaio. E continuo defendendo que meu ódio não é pelas músicas, mas pelo modo como as tocavam — essa coisa "Nós somos felizes, nós somos fadas, o mundo é lindo" —, porque não soa como alegria incontida e contagiante, mas como alegria enlatada, conformada. "Estamos todos comendo merda, não é ótimo?" Não tem nada a ver com as letras, estou falando do modo como as músicas soam. Aliás, não tenho que justificar nada: eu não gosto.

Mas sou completamente capaz de apreciar essas mesmas músicas quando interpretadas por gente que eu não odeie, vide versão abaixo:


A Perfect Circle, eMOTIVe (2004): Imagine

Há quem diga que a canção foi desfigurada e que o clima não tem nada a ver com a letra, mas acho que está justamente aí a graça. Tirando uma ou outra palavra-chave (peace1, dreamer, sharing2), a letra é quase apocalíptica, como se narrasse o resultado de uma guerra que devastou o mundo inteiro. "Imagine que não há Paraíso... nem Inferno... acima, apenas o céu... pessoas vivendo apenas pelo presente. Imagine que não há nações... ninguém para matar ou por quem morrer... nenhuma religião."

1 Lembrando daquela idéia de que o homem só encontra paz verdadeira no túmulo.

2 Lembrando que "sharing" é eufemismo para pirataria, um dos piores tipos de crime já inventados na história. Foi o que o Metallica disse.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Problema seu

Não sei pedir ajuda. Se um problema aparece, eu me viro. Fui criado assim.

Quando era molequinho, nunca havia dinheiro sobrando para nada. Nunca tive brinquedos legais. E não ajudava nada que meus amigos tivessem brinquedos legais. Eu podia brincar, mas não eram meus. (E não ia pedir que me emprestassem, eram deles por algum motivo. Provavelmente era eu quem estava fazendo algo errado para acabar sem brinquedos legais.) Mas era um molequinho e, com ou sem brinquedos legais, eu tinha que brincar. E improvisar. Muito. Qualquer coisa desmontável era rearranjada na marra com partes de outras coisas desmontáveis. Se algum objeto parecesse vagamente com uma espaçonave (e havia um aposento cheio delas: ferramentas, acessórios, peças, tesouros), blim! Brinquedo. Frasco engraçado? Brinquedo. Carrinho velho quebrou? Dois brinquedos novos. Muito do meu entusiasmo por engenharia, física, encaixes, relações, estruturas, moléculas e tudo mais, trago dessa época. Por necessidade. Eu lia muito para entender como as coisas funcionavam. Qualquer coisa. (Viu? Eu tinha livros, não era de todo ruim. Seja qual for o dano irreversível que a falta de brinquedos legais na infância possa causar à psique humana, livros devem compensar pelo menos um pouquinho. De fato, não estou reclamando, não acabei tão estragado assim. Digo, por favor: eu sou totalmente capaz de fingir que sou normal.)

Também não havia lá muito dinheiro sobrando para médicos, então era sempre boa idéia evitar doenças e fraturas. Até hoje, sempre que aparece uma dor nova, minha providência imediata é esperar pacientemente até que desapareça. Não apenas pelo custo das consultas; vários diagnósticos longe de corretos durante a infância não contribuíram muito para minha confiança em médicos. [Esqueci de dizer: meu pai tinha dois escorpiões conservados dentro de um vidro, e era tão legal porque ninguém mais tinha. Mas eu não podia brincar com eles.] Nem comecem a dizer que isso é perigoso e que eu posso estar criando um aneurisma ou algo assim sem saber. Você não vê ninjas ou piratas andando poraí se preocupando com aneurismas; eles conseguiram se virar muito bem até hoje, com vidas longas e saudáveis. Ou morrendo de forma rápida e violenta — qualquer uma das duas opções está ótimo pra mim.

Mas não é nada disso que eu quero dizer. De certa forma, estou enrolando vocês por dois parágrafos. O que realmente quero dizer é: não sei pedir ajuda. [Ah, ótimo, o mesmo que já falou no começo; com este, são três parágrafos de enrolação.]

Minha cabeça está programada assim: se um problema aparece, resolva sozinho; se não conseguir, enterre. Mas nem tudo dá para enterrar ou abafar, e só comecei a perceber isso quando deixei de pensar como criança (ou seja, uns dois anos atrás). Talvez, se eu precisar de alguma coisa, possa simplesmente pedir ajuda a alguém. É um conceito muito novo e fascinante, devo dizer. Se realmente funcionar, há boas chances de que esse sistema resolva vários problemas da humanidade. Como quando as pessoas não conseguem fazer as coisas sozinhas.

Mas como se faz? Como se pede ajuda? Sempre que eu tento, as pessoas não levam muito a sério. Talvez esteja esquecendo alguma parte importante. Tenho que dizer uma senha? Usar algum sinal especial? Achei que bastava dizer "Olá, tem uma coisa me incomodando, sabe, provavelmente este tubarão mordendo o meu pé", mas não tem funcionado. Em todo caso, estou quase certo que "rs" seguido de "ei, já viu isso aqui? [link]" significa realmente "Vire-se". (Cara a cara ou por telefone, as pessoas não costumam rir ou recorrer aos links, mas acabam dizendo algo com o mesmo efeito.) Certamente tenho várias manias estranhas, mas achei que era padrão tentar ajudar as pessoas com seus problemas. Ao menos, ouvir sobre eles. Talvez não seja óbvio que algo banal para uns seja um obstáculo para outros. Ou, talvez, essa história de pedir ajuda seja mais uma coisa que você tem que aprender a viver sem.

Pois prestem atenção: se algum dia estiverem perdidos em uma ilha deserta sem brinquedos legais, VIREM-SE. Eu que não vou ajudar vocês.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Pensamento do dia

"Deus quis que eu fosse ateu. Quem é você para duvidar da sabedoria dele?"

(Autor: Internet)